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É difícil de admitir, mas as pessoas que difamam a morte nunca a conheceram. Ela é bem mais educada do que parece. A conheci em um dia de trabalho banal, em uma reunião banal, em uma quinta banal. O atendimento da agência de propaganda agendou a reunião como rotina.
Estranhei, olhei o nome na pauta do dia, achei que fosse brincadeira, alguma piada da qual me escapou o significado. Abri a porta da sala de reunião e ali estava ela sentada à mesa. Era parecida comigo, mais, era uma cópia quase exata, a diferença estava nos detalhes. O mais gritante: não tinha olhos, havia moedas no lugar deles, a postura era relaxada e a voz, bem mais gentil, sem nenhum indício de ansiedade ou agitação. O meu tempo era finito, o dela não. Tinha a calma de quem tem todo o tempo do mundo.
Era a morte. A minha morte, a morte com M maiúsculo. Trabalhamos para obter coisas para poder evitá-la.Ocupamo-nos no dia-a-dia para não pensar nela. Deixamos obras, construímos monumentos, temos filhos, tudo na esperança de que algo sobreviva a nós mesmos e assim, nossa presença permaneça um pouco mais, mesmo quando não estejamos mais aqui. Em suma, vivemos em prol dela, passamos cada minuto de nosso tempo a evitando. Lembrança constante da finitude. De todos os esforços. De todas as histórias. Vivemos para evitar a morte. Sonhamos para ignorar a morte. E mesmo assim, ali estava ela, real e palpável naquela sala e naquele momento, fiz o que qualquer pessoa faria naquela situação.
Ofereci um cafezinho. Ela não queria. Queria um redator publicitário. Queria uma campanha, uma grande campanha para mudar a visão que todos tinham dela. Uma injustiça, reclamou, no fim das contas a vida é que era uma tremenda vaca venenosa. Toda a dor se faz em vida. Toda injustiça se faz em vida. Os vivos gritam, os vivos choram. Os mortos não.
Ofereci um cafezinho. Ela não queria. Queria um redator publicitário. Queria uma campanha, uma grande campanha para mudar a visão que todos tinham dela. Uma injustiça, reclamou, no fim das contas a vida é que era uma tremenda vaca venenosa. Toda a dor se faz em vida. Toda injustiça se faz em vida. Os vivos gritam, os vivos choram. Os mortos não.
Para todo o mal, ela oferecia o não. Embora abrir mão de tudo não parecesse uma boa perspectiva. Seu ponto de vista era bom, tive que admitir. Até que não seria tão difícil passar a mensagem. Morrer tinha lá suas vantagens, não é mesmo? Quer dizer, vivos são canalhas, cornos e caloteiros. Já o morto, todo morto é santo.
“Morte. Ela limpa seu caráter.” - Boa chamada. Bem forte e direta, tinha apelo.
Os outros não gostam de você? Tome uma atitude. Morra.
A morte também era ótima para grandes dívidas. Já viu algum morto no SPC? Eu não. Baixa imediata.
“Morte. Ela salva sua poupança.” Já estou vendo, outdoor grande, nove metros, a morte, Madre Tereza de Calcutá de um lado, John Lennon de outro. “Morte, sempre em boa companhia!”.
“Morte. Você também pode ter a sua.”
“Seus vizinhos vão morrer de inveja. Faça o mesmo.”
Foi mais rápido que o esperado, tínhamos uma linha forte de argumento, ao fim apertei sua mão, como um velho conhecido e a levei até a saída. Despedimo-nos formalmente. Apenas poderia ter dispensado sua frase de humor mórbido:
- Bom trabalho. A gente se vê por aí.
Adorei a forma bem humorada com que a personagem "Morte" foi construída e personificada no texto de Fábio Ochôa, o qual desmistificou-a (ou desmitificou-a) tão bem, tornando-a até simpática. Lembrou-me a "Dona Morte" dos HQs de Maurício de Sousa, que a trata de modo tão complacentemente humana... Ionara Gallina
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