terça-feira, 19 de abril de 2011

Morte. Você ainda vai ter a sua.

Por: Fábio Ochôa 
kirbytech2@yahoo.com.br



 
É difícil de admitir, mas as pessoas que difamam a morte nunca a conheceram. Ela é bem mais educada do que parece. A conheci em um dia de trabalho banal, em uma reunião banal, em uma quinta banal. O atendimento da agência de propaganda agendou a reunião como rotina.
Estranhei, olhei o nome na pauta do dia, achei que fosse brincadeira, alguma piada da qual me escapou o significado. Abri a porta da sala de reunião e ali estava ela sentada à mesa. Era parecida comigo, mais, era uma cópia quase exata, a diferença estava nos detalhes. O mais gritante: não tinha olhos, havia moedas no lugar deles, a postura era relaxada e a voz, bem mais gentil, sem nenhum indício de ansiedade ou agitação. O meu tempo era finito, o dela não. Tinha a calma de quem tem todo o tempo do mundo.
Era a morte. A minha morte, a morte com M maiúsculo. Trabalhamos para obter coisas para poder evitá-la.Ocupamo-nos no dia-a-dia para não pensar nela. Deixamos obras, construímos monumentos, temos filhos, tudo na esperança de que algo sobreviva a nós mesmos e assim, nossa presença permaneça um pouco mais, mesmo quando não estejamos mais aqui. Em suma, vivemos em prol dela, passamos cada minuto de nosso tempo a evitando.  Lembrança constante da finitude. De todos os esforços. De todas as histórias. Vivemos para evitar a morte. Sonhamos para ignorar a morte. E mesmo assim, ali estava ela, real e palpável naquela sala e naquele momento, fiz o que qualquer pessoa faria naquela situação.
Ofereci um cafezinho. Ela não queria. Queria um redator publicitário. Queria uma campanha, uma grande campanha para mudar a visão que todos tinham dela. Uma injustiça, reclamou, no fim das contas a vida é que era uma tremenda vaca venenosa. Toda a dor se faz em vida. Toda injustiça se faz em vida. Os vivos gritam, os vivos choram. Os mortos não.
Para todo o mal, ela oferecia o não. Embora abrir mão de tudo não parecesse uma boa perspectiva. Seu ponto de vista era bom, tive que admitir. Até que não seria tão difícil passar a mensagem. Morrer tinha lá suas vantagens, não é mesmo? Quer dizer, vivos são canalhas, cornos e caloteiros. Já o morto, todo morto é santo.
“Morte. Ela limpa seu caráter.”  - Boa chamada. Bem forte e direta, tinha apelo.
Os outros não gostam de você? Tome uma atitude. Morra.
A morte também era ótima para grandes dívidas. Já viu algum morto no SPC? Eu não. Baixa imediata.
“Morte. Ela salva sua poupança.” Já estou vendo, outdoor grande, nove metros, a morte, Madre Tereza de Calcutá de um lado, John Lennon de outro. “Morte, sempre em boa companhia!”.
“Morte. Você também pode ter a sua.”
“Seus vizinhos vão morrer de inveja. Faça o mesmo.”
Foi mais rápido que o esperado, tínhamos uma linha forte de argumento, ao fim apertei sua mão, como um velho conhecido e a levei até a saída. Despedimo-nos formalmente.  Apenas poderia ter dispensado sua frase de humor mórbido:
- Bom trabalho. A gente se vê por aí.

Um comentário:

  1. Adorei a forma bem humorada com que a personagem "Morte" foi construída e personificada no texto de Fábio Ochôa, o qual desmistificou-a (ou desmitificou-a) tão bem, tornando-a até simpática. Lembrou-me a "Dona Morte" dos HQs de Maurício de Sousa, que a trata de modo tão complacentemente humana... Ionara Gallina

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