sexta-feira, 22 de abril de 2011

O Evangelho segundo Ezequiel

Por: Márcio Ezequiel
marcio_ezequiel@yahoo.com.br
Fonte: Diário Popular



Não entendia completamente por que estava ali. Não duvidava, contudo, que chegada era a hora. O lugar também estava certo. Tudo se mostrava pronto. A seara, madura. Os lírios, lindamente vestidos. Os pássaros, alimentados. O coro de pedras, afinado. Não poderia evitar mesmo que quisesse. Foi para isso que viera. Carregaria toda a culpa.
Era o que autorizava prosseguir segundo o ditame profético. Consciência e razão, todavia, não se faziam consensuais em seus arrazoados conscienciosos. Repetia mentalmente o pão, o peixe e o vinho. O pão, o peixe e o vinho... Oferta de viúva pobre. Havia de cumprir sua sina e onde contassem o que ocorreu, haveria memória sua. 
Oh, cálice intragável. Transbordante. Canção de bêbados. Deitou-se suavemente sem dizer nenhuma palavra. O suor escorreu em grandes gotas até o chão. Um corpo entregue. Transpassado. Sacrifício vivo oferecido a todos na roda dos escarnecedores. Ladrões, doutores da lei, cobradores de impostos e prostitutas. No beijo da perfídia, indagou-se sobre o preço que valia seu corpo. Um pedaço de pão ao menos? Um copo de água? O silêncio foi a única resposta. O silêncio é sempre a única resposta. O silêncio é sempre a única resposta esperada. E o eco no jardim se encarregará de dizer tudo de novo. Vinagre e fel. Nada demais. Acostumar-se-ia ao acérrimo gosto da humanidade. E, inclinando a cabeça, entregou sua alma em seco suspiro, de uma vez por todas. Por um só homem o pecado entrou na vida de todos. E haveria de ser perdoado por um só coração. Rasgou-se o véu de cima abaixo. O caminho não é somente estreito. É longo. Ao abismo desceu sem companhia. Mas agora vive e subiu aos mais altos arranha-céus. Conheceu reinados em glória e decadência. Visitou Guernica em prantos. Viu cruzes voando pelo firmamento. Correu por todos os campos de batalha do velho mundo e de fato, só há um velho mundo velho. Correu até não mais poder e uma lança penetrou-lhe o espírito, fazendo verter o sangue inocente. Como água derramou-se por ossos desconjuntados e, em harmonia geométrica, desfez-se. Derreteu como uma vela, seu papel de criança. De superstar. De ativista. De pacifista. De alguém deitado no canto frio esperando por resposta. Um eco de silêncio dos Jardins do Éden, da Babilônia e do Getsêmani foi a resposta.
E agora, terceiro dia? Até quando? Até quando esperar? Até quando esperar a fome acabar? Até quando pronunciar o amor em vão? Até quando mentir? Até quando trair? Até quando roubar? Até quando ofender pai e mãe? Até quando matar? Até quando o mistério? Até quando a violência? Até quando a terra sem sal? Até quando a pobreza de espírito? Até quando a impunidade e a sede de justiça?
Quando despertará o juízo de sua esplêndida tumba? Quando chegará o perdão? Quando chegará o castigo? Estamos cansados. Estamos cansados porque é sexta. Estamos cansados porque logo é sábado e não descansaremos mais uma vez. Estamos cansados porque depois de amanhã é Páscoa! Estamos cansados há muito tempo. Somos aquele homem dependurado há dois mil anos.
Somos a mesma pessoa. Esta é a nossa genealogia. Filhos de Da Vinci, discípulo de Jesus. Filhos de Isaac Newton. De Platão e dos gregos. Filhos de Abraham Lincoln, que era filho de Jeová, irmão de Bob, filho de Jah e primo de Jorge e Iemanjá. Filhos de Amadeus. De Bach. De Joana D'Arc. Somos descendentes diretos de Aaron, que gerou John e Paul, João Paulo e tantos Pablos, Picasso, Neruda. Irmãos de Tereza e Dulce. Somos sobrinhos de Olga, irmãos do Betinho e filhos de Eva, que gerou outras Marias e Clarices, filhas de Gandhi. Somos da linhagem de Mandela, de Mama África. Somos irmãos de Lutero e Martin Luther. De Martin e Lewis. De Lévi-Strauss. De Engles e Marx que gerou Groucho, que gerou Allen. Somos descendentes de Maomé, que estava junto ao profeta Ezequiel, quando viram um disco voando no meio do céu, anunciando que tudo estava consumado.  

2 comentários:

  1. Eu sei que não se deve comentar o texto de um veterano, mas vou dizer que deste seu post eu lamento muito recordar que somos irmãos de Hitler... Mas o contexto é imexivel, tanto no seu texto quanto na humanidade.... Lamentos de uma alma sensivel... bj

    Catita

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  2. Claro que pode comentar, Catia. Gostei dessa do veterano. Hehehehehe. Tipo a piada do Diabo é Diabo porque é velho. Huauauauh. Enfim, segui o modelo de genealogia usada no início do evangelho de Mateus. Lá também não foi incluída nenhuma ovelha negra. Mas teu lamento é muito pertinente. Primeiro porque de fato temos Hitler, Caim, Judas, Stálin, Joaquim Silvério, Vargas, Pinochet e o Bandido da Luz Vermelha em nossa genealogia humana. Reconhecer o mal em nós mesmos é uma maneira de controlá-lo. E segundo, porque o texto tem também, nas entrelinhas, o teu mesmo lamento, clamando por justiça e juízo. Clamando que o que chamamos de Deus quebre o maldito silêncio milenar.Seria tão mais fácil. Infelizmente, talvez o Apocalipse seja um processo pessoal.

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